26 de setembro de 2011

Os mundos do mundo...

Vagueio num mundo de estatutos, aparências e hierarquias erróneas. Num mundo povoado por muitos seres que se julgam, ridiculamente, superiores. A irritação já deu lugar em mim ao sorriso da mais profunda ironia. A cegueira de muitos impede-os de enxergar que o seu lugar no universo é fruto de um feliz acaso e que a sua posição poderia ser, na realidade, bem diferente. Caminham altivos, olhando de cima como se nada nem ninguém os pudesse derrubar. Observo-os sem sentir vestígios de inferioridade, admiração ou reverência em relação a tais individualidades.
É assim num dia banal mas um dia banal também nos pode fazer ver o mundo numa outra perspectiva.
Saí para colocar o lixo no contentor. Tarefa desagradável... À medida que me aproximava com três sacos carregados de resíduos, nos quais se incluíam produtos alimentares que deitava fora porque tinha deixado passar o prazo de validade, observo uma senhora aproximar-se na direcção oposta. "Só espero que esta cigana não me chateie", pensei com uma petulância da qual me condeno. Por instantes, ficámos lado a lado cada uma de frente para o seu contentor... eu despejo o meu lixo num deles e ela procura no do lado, entre a pestilenta confusão, algo para comer. Olho-a perturbada. Ela pressente o meu olhar e sussurra um tímido "boa tarde". Retribuo automaticamente e sigo caminho para o estacionamento onde tinha a bagageira do carro atulhada com as compras que tinha feito, previamente, no supermercado. Pelo caminho uma ideia perturba-me a mente "afinal há mesmo fome em Portugal". Procuro abstrair-me e retiro os sacos da viatura magicando uma forma de transportar tudo aquilo até casa. E eu que só ia comprar leite... Subitamente sinto uns olhos caídos em mim. No outro lado do passeio, revejo aquele vulto carregado de pesares mas despido de emoções. Olha-me à distância... Respiro fundo, cai-me a veste mundana, pouso os sacos no chão molhado pela chuva e peço-lhe que se aproxime. Ela olha-me incrédula e a medo. Insisto na aproximação e ela acaba por ceder. Abro os sacos e entrego-lhe os unicos bens realmente úteis que transportava... o pão e o leite. Vi nos seus olhos verdes o brilho que uma criança tem ao abrir as prendas no Natal. "Que Deus a ajude", repetiu vezes sem conta enquanto se afastava. Segui para casa, envergonhada, com sacos repletos de cremes, champoos, coca-cola, chocolates, bolachas, rebuçados...
Aquela senhora despertou em mim um verdadeiro sentimento de inferioridade... Vi claramente a futilidade do meu dia a dia. Fiquei sem pão e sem leite mas com os olhos mais abertos.
Quanto mais superior e importante te julgas, mais vulgar e mediocre és! E existe tanta gente a precisar de aprender a lição...

3 comentários:

Ana disse...

Escreves com uma intensidade que parece que somos levados para lá para os sitios que descreves. Conseguimos sentir quase o que sentes e ver o que ves. Muitos parabens. gostei imenso!

Cristina disse...

É tao verdade o que dizes. Parabens pela escrita, muito bom mesmo!

PAULA PEDRO disse...

Parabéns.
Muito emotivo e verdadeiramente de uma sensibilidade acutilante este texto.
Realmente, a vida tem mais cor com pequenas coisas, que afinal, são de uma enorme grandiosidade.

Beijinhos

PP